quinta-feira, 10 de maio de 2007

Mutarelli, o expressionismo e o horror

A estética de Lourenço Mutarelli é a estética do grotesco.

Suas formas são disformes, seus personagens, perturbados, doentes, sofridos. Predominam as sombras, o escatológico, a morte, os inimagináveis processos pelo qual o corpo passa após o fim de suas funções vitais. A perda, a deformação, o desespero, o limite, o fim, a angústia, o pesadelo infernal de se viver em dor. Estes são temas abordados constantemente através da obra de Mutarelli.

Suas histórias, desenhadas predominantemente em preto e branco, nos remetem a um universo onírico, de escuridão, deformação, mutação e morte. Um universo enevoado, uma espécie de pesadelo perene, eterno e real, que é a realidade.

No universo dos quadrinhos, esta é uma abordagem relativamente recente, entretando, outras mídias gráficas já haviam explorado o disforme e o soturno. Em especial, o cinema. No final do século XIX, com a invenção do cinematógrafo pelos irmão Lumiére, tudo passa a ser asssunto para a câmera que registra imagens em movimento. Paralelamente, ao mesmo tempo pensadores como Freud trazem o desenvolvimento da psicanálise, que faz vir a tona todo um novo universo, o inconsciênte, que demanda ser explorado.

Nietzsche mata deus, há uma guerra mundial. Vivemos em tempos de mudança e caos. Se o Cinema precisa de uma tela branca que receba a projeção das imagens registradas em película, Freud propôs que o psicanalista funcionasse como uma "tela branca" onde o analisando "projetasse" suas fantasias.

Para Lourenço Mutarelli, sua “tela branca” é o papel, aonde ele imprime suas sensações e impressões mais negras. O cinema expressionista surge retratando a loucura, a doença, a morte. Os filmes expressionistas são sombrios e pessimistas, com cenários fantasmagóricos, exagero na interpretação dos atores e nos contrastes de luz e sombra. A realidade é distorcida para expressar conflitos interiores dos personagens.

A obra fundadora do movimento em sua vertente cinematográfica, “O Gabinete do Doutor Caligári”, dirigido por Robert Weine em 1919, passa-se justamente em um sanatório. Dois loucos conversam, e um deles conta uma bizarra e sombria história: em Holstenwall, uma pequena cidade no interior da Alemanha, um homem chamado Caligári controlava o sonâmbulo Cesáre.

Sob seu comando, Cesáre pratica pequenos assassinatos nas sombras. Denso e perturbador, todo o cenário de Caligári, com ângulos distorcidos, sombras fortes, cenários improváveis, perspectivas fora de eixo e proporções descabidas, remete a um pesadelo inconsciênte. E é esse uns dos efeitos que Mutarelli atinge em sua obra. Descascar a realidade e expor as desagradáveis entranhas do subjetivo, trazendo choque e confronto, são objetivos claros das obras do expressionismo e de Mutarelli.

O imaginário de Lourenço Mutarelli é povoado pela morte, pelo monstruoso e pelo deformado. Temos estes mesmos temas abordados em outra clássica obra Expressionista, “Nosferatu” de Friedrich Murnau. Livremente inspirado em Drácula de Bram Stoker, “Nosferatu” retrata a existência de uma criatura disforme, solitária, a procura de amor perdido. Um vampiro. Uma criatura noturna, que precisa matar outros seres humanos para sobreviver, se apaixona por uma mortal e deve mata-la para que possam ficar juntos.

Após a ascenção do nazismo o cinema expressionista Alemão é sufocado. A última grande obra é Metrópolis, uma fantasia futurista dirigida por Fritz Lang.

As produções experimentais vão para o surreal.

Como particularmente interessantes podemos destacar o trabalho de dois cineastas. “O cão andaluz”, filme de Luis Buñuel e do papa do surrealismo Salvador Dalí, e Freaks de Todd Browning, ainda que não exatamente um filme surrealista, ele tem diversos elementos surreal.

Em “O cão andaluz” temos a exploração do absurdo, do surreal, do imaginário e do violento. Uma amálgama de temas concentrados em 17 minutos de película sombria e perturbadora. Conforme uma nuvem passa pela lua, o olho de uma mulher é dilacerado por uma navalha. Um homem tropeça em uma mão decepada na rua. De outa mão, com um buraco no meio, saem formigas. A justaposição de imagens surreais e violentas nos leva a associar o que vemos com o inconsciênte. Da mesma forma, a obra de Mutarelli, em muito, explora os lados obscuros, negros e dormentes da alma humana. Não são raros seus painéis que abordam a religião, o sexo, a decomposição, tudo concentrado em uma única imagem.

Em "Freaks", de Browning, temos uma narrativa contada de forma tradicional. Em um circo, um grupo de aberrações humanas forma uma pequena família. Temos a mulher barbada, o homem sem pernas, a anão, a mulher com a cabeça encolhida, entre outros. Durante as filmagens foram usados atores realmente deformados, fato que causou censura e protestos a época de sua exibição.

Mais recentemente, temos os filmes do cineasta e roteirista de histórias em quadrinhos Alejandro Jodorowsky (que trabalhou com o francês Moebius em obras como “O Incal”) como “El Topo” e Holy Moutain. Nelas o absurdo também é explorado. Suas histórias, violentas, são povoadas pelo grotesco e ele também usou pessoas com defeitos congênitos em cenas de El Topo.

Outros cineastas contemporâneos como David Cronemberg e David Lynch também exploram o inconsciente humano e a fragilidade do corpo e da carne. Um sinal de nossos tempos, o pessimismo expressionista continua tão atual, aparecendo em diversas formas de expressão artística.

Como se vê muitos de seus elementos influenciaram o teor das histórias em quadrinhos atuais e a obra de Lourenço Mutarelli é um exemplo disso.

Visite o website oficial do artista aqui.

Cidade de Deus




“Cidade de Deus” surpreende não pelo tópico que aborda, mas pela maneira como o faz. A História é bem amarrada e bem contada, através de flashbacks e quebras na narrativa que se justificam e se encaixam muito bem no final.

O filme é construído de forma cuidadosamente encaixada através de várias digressões, elípses e pequenos flashbacks internos. A narrativa faz com que o espectador acredite poder prever o que irá acontecer, em vários momentos, mas essa previsão não se cumpre.

A história começa nos anos 60, passa pelos 70 e vai até os 80, com reconstituição de época muito bem feita. Figurinos, cenários, objetos de cena, cortes de cabelo, música, carros; tudo bem cuidado. A fotografia é contemporânea, fazendo uso de recursos modernos de edição e efeitos. com movimentos de câmera ousados, câmera lenta, acelerada, e planos irregulares. A edição é composta por cortes rápidos e entrecortados.

Uma seqüencia de estupro é particularmente interessante. A violência em si quase não é mostrada. Nesta cena o filme trabalha apenas com som, imagens fragmentadas e fora de foco, e total escuridão e silêncio. Som e imagem vão e vem em quebras, entre incomodos e duradouros segundos de tela preta. As tomadas de escuridão e surdez indicam os desmaios e a desorientação da personagem. Uma seqüência absolutamente impressionante e criativa, o filme faz uso dos sentidos para incorporar o público a ação.

Em suma, “Cidade de Deus” é um excelente filme. Conta uma história muito bem amarrada, com dramaturgia em destaque, um roteiro sólido e é, técnicamente, impecável. Muitos tem atacado o filme justamente por essa razão, o que soa incongruente e paradoxal.

Deveria o filme ter fotografia e recursos de edição mal acabadados para que fosse bom? Acredito que não. De qualquer maneira ele cumpre seu objetivo, de passar sua história de uma determinada maneira. Ele é convincente e extremamente impactante. Não acredito que exista uma maneira de sair do cinema ileso após assistir a esse filme. Bem ou mal, ele exige uma reação.