UMA
BREVE ANÁLISE DE CABO DO MEDO
De Martin Scorsese
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"Cape Fear", de 1962, com Robert Mitchum e Gregory Peck |
“Cabo
do Medo” é uma refilmagem de um filme dos anos 60 feita por Martin Scorsese no
inicio dos anos 90. Vi esse filme com meus amigos Leonardo e Denis em um cinema
do centro de São Paulo na época de seu lançamento, mas isso não vem ao caso. O
que vem ao caso é que o filme conta a história de um homem, Max Cady (Robert
Deniro) que foi condenado a cadeia por estupro. Sua condenação se deu, se em
muito, devido ao fato de que seu advogado, Sam Bowden, deliberadamente o
defendeu mal, tendo consciência de que seu cliente era um estuprador. Quando
finalmente solto, Cady resolve partir para a vingança, perseguindo Bowden e sua
família. Aqui vou analizar algumas cenas do filme e sua construção.
No
inicio do filme, temos uma seqüência interessante de cortes marcantes com
mudança de ângulo de câmera na cena em que Jessica Lange (Leigh Bowden) está se observando no espelho, até ser
abordada por Nick Nolte (Sam Bowden). A abordagem é repentina e desperta
surpresa e atenção. Esse, na verdade, é a forma narrativa do filme: cortes
bruscos e repentinos que levantam a atenção e deixam o espectador em um estado
constante de tensão e expectativa.
Outra cena que segue essa máxima apresenta-se
na seqüência em que Sam Bowden é abordado por Robert DeNiro (Max Cady) no
estacionamento, e fica claro o desconforto entre os dois personagens (nesse
momento Cady finalmente se identifica como um antigo "cliente" de
Bowden, e seu método de intimidação através do estabelecimento de um estado de tensão
e insegurança constante tornam-se claros). Os cortes da cena são rápidos e
alternam entre Cady e Bowden se observando e discutindo pacificamente, mas
apenas nas superfície, pois esta claro o estado de constante tensão que se
passa por debaixo das aparências. A posição de Cady, apoiando-se sobre o carro
de Bowden e este inferiorizado por estar sentado (e sendo mostrado da
perspectiva de Cady como menor) também informa sobre a relação entre os dois.
Com
a crescente tensão do filme, os cortes tornam-se gradualmente mais bruscos. É
importante notar a presença da música de Elmer Bernstein e Bernard Herrmann
como agente fundamental e complementador da edição do filme (realisada por
Thelma Schoonmaker, que desenvolveu parceria notoria com Scorcese ao longo dos
anos). Outra cena em que o corte marca presença é quando Sam entra no
escritório de seu amigo detetive e lhe pede uma arma. O corte é feito a partir
de uma cena em que a porta da casa dos Bowden é batida e com o impacto somos
levados ao escritório.
Temos
uma interessante elipse quando Nolte, em seu escritório, atende ao telefone
após ser informado de que sua esposa precisa falar com ele. Na seqüência já
temos ele se dirigindo a sua casa, tenso, pois o cachorro da família foi
envenenado (entretanto apenas descobrimos isso assim que ele chega). A tensão é
mantida pois sabemos que algo de ruim está acontecendo, só não sabemos o que.
Assim a narrativa do filme se constrói causando pequenos momentos de constante
desconforto no espectador.
Quando
Danny (Juliette Lewis), a filha de Bowen, sai da escola após ser
"seduzida" pelo "professor de teatro" (novamente Cady)
temos outra elipse, onde não podemos ver o percurso que ela fez mas sim está
subentendido que ela esta voltando, e seu desespero se deve a presença e a
maneira desconfortável com que Cady a tratou, alternando entre o sedutor e o
perigoso.
Uma
seqüência interessante onde o suspense é crescente se da quando a família
prepara uma armadilha para Cady com auxílio do investigador. A tensão é
constante, e seu clímax culmina nas mortes da serviçal da família e do
investigador. Trata-se de uma cena
desagradável onde Bowden escorrega no sangue da vítima no chão da cozinha, e
perde o controle, saindo ensandecido e dando disparos na porta da casa. O
conflito se estabelece quando vemos que Cady tomou o lugar da serviçal e vai
matar o investigador, sabemos disso e somos cúmplices de Cady, não podemos
fazer nada assim que a tomada é cortada, ficando fadados a aguardar os resultados.
A
seqüência final é grandiosa e catastrófica. Toda a tensão acumulada ao longo do
filme é finalmente liberada nos minutos finais de forma grandiloqüente e
apocalíptica. Ela se constrói a partir do momento em que o cenário inóspito se
põe presente (um barco a beira do rio, a noite) e a tempestade crescente que se
apresenta conforme a edição se torna mais ágil e fragmentada. O clímax é
atingido quando temos a família a mercê de Cady, seus jogos de tortura com Sam
e a alternação de ameaças a Leigh (esposa) e Danny. Temos a simulação de um
julgamento de acordo com a ética doentia de Cady, que demonstra o lado falho do
"herói" do filme (Bowden). De
uma forma ou de outra ele agiu errado: omitiu um fato na corte e não cumpriu
seu papel moral como advogado. Ninguém é limpo de acordo com Scorsese (Bowden
também flerta com uma colega de trabalho no inicio do filme, em mais uma
indicação de sua dubiedade de caráter). Cady é uma lembrança disso, trás isso a
tona.
Com
o clímax final temos a quebra da aparente felicidade estável da família colocada
a mercê de um psicopata metódico. Bowden, algemado, está submetido aos atos de
Cady que age como Júri, Juiz e Carrasco. Ele faz citações bíblicas ("Você
esta condenado ao nono circúlo do inferno, o circúlo dos traidores!")
dando um aspecto religioso ao martírio que impõe sobre a família. Cady é
queimado por Danny, em uma cena que desperta surpresa e desconforto, mas
finalmente alivio (estaremos livres dele?). Evidente que, como em todo bom
thriller, as coisas não são tão fáceis assim, e o criminoso volta em um momento
surpresa, agarrando Bowden e dando continuidade a atmosfera de tensão
constante. Finalmente, quando o barco perde controle na tempestade temos uma
alternação de cenas do barco fora de controle e a luta interior no interior dos
dois personagens centrais. Tanto o barco como a câmera giram, causando a
sensação de turbulência e tensão. A água e jogada mas volta, retrocede, e
finalmente eles caem em uma espécie de praia.
Lá, inicia-se a luta selvagem entre os dois (chegam a usar pedras) e
Cady age como a consciência de Bowden, sempre eufórico, apocalíptico. Ele é a consciência
que não vai embora, nunca morre, atormenta.
Finalmente Cady afunda, lentamente, e morre. Bowden lava as mãos do sangue
(sua culpa?) algo que nunca irá embora. Ele não está limpo, e Max Cady irá
sempre lhe lembrar disso.
A construção dessa seqüência é feita de forma
crescente, a narrativa torna-se mais dinâmica à medida que o tempo passa e o
clímax da luta final leva a um final desconfortável e inquietante. A última
cena é tomada pelos olhos inocentes (?)
de Danny negativados, nos observando enquanto os observamos de volta. . "Se
você vive no passado, morre um pouco a cada dia" é a frase final.
Podemos
não viver no passado, mas ele sempre será nossa sombra, sempre por perto, para
nos lembrar do que somos e fizemos.