quinta-feira, 2 de agosto de 2012

UMA BREVE ANÁLISE DE CABO DO MEDO


UMA BREVE ANÁLISE DE CABO DO MEDO
De Martin Scorsese


"Cape Fear", de 1962, com Robert Mitchum e Gregory Peck

“Cabo do Medo” é uma refilmagem de um filme dos anos 60 feita por Martin Scorsese no inicio dos anos 90. Vi esse filme com meus amigos Leonardo e Denis em um cinema do centro de São Paulo na época de seu lançamento, mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que o filme conta a história de um homem, Max Cady (Robert Deniro) que foi condenado a cadeia por estupro. Sua condenação se deu, se em muito, devido ao fato de que seu advogado, Sam Bowden, deliberadamente o defendeu mal, tendo consciência de que seu cliente era um estuprador. Quando finalmente solto, Cady resolve partir para a vingança, perseguindo Bowden e sua família. Aqui vou analizar algumas cenas do filme e sua construção.
            No inicio do filme, temos uma seqüência interessante de cortes marcantes com mudança de ângulo de câmera na cena em que Jessica Lange (Leigh Bowden)  está se observando no espelho, até ser abordada por Nick Nolte (Sam Bowden). A abordagem é repentina e desperta surpresa e atenção. Esse, na verdade, é a forma narrativa do filme: cortes bruscos e repentinos que levantam a atenção e deixam o espectador em um estado constante de tensão e expectativa.


    Outra cena que segue essa máxima apresenta-se na seqüência em que Sam Bowden é abordado por Robert DeNiro (Max Cady) no estacionamento, e fica claro o desconforto entre os dois personagens (nesse momento Cady finalmente se identifica como um antigo "cliente" de Bowden, e seu método de intimidação através do estabelecimento de um estado de tensão e insegurança constante tornam-se claros). Os cortes da cena são rápidos e alternam entre Cady e Bowden se observando e discutindo pacificamente, mas apenas nas superfície, pois esta claro o estado de constante tensão que se passa por debaixo das aparências. A posição de Cady, apoiando-se sobre o carro de Bowden e este inferiorizado por estar sentado (e sendo mostrado da perspectiva de Cady como menor) também informa sobre a relação entre os dois.
Com a crescente tensão do filme, os cortes tornam-se gradualmente mais bruscos. É importante notar a presença da música de Elmer Bernstein e Bernard Herrmann como agente fundamental e complementador da edição do filme (realisada por Thelma Schoonmaker, que desenvolveu parceria notoria com Scorcese ao longo dos anos). Outra cena em que o corte marca presença é quando Sam entra no escritório de seu amigo detetive e lhe pede uma arma. O corte é feito a partir de uma cena em que a porta da casa dos Bowden é batida e com o impacto somos levados ao escritório.
Temos uma interessante elipse quando Nolte, em seu escritório, atende ao telefone após ser informado de que sua esposa precisa falar com ele. Na seqüência já temos ele se dirigindo a sua casa, tenso, pois o cachorro da família foi envenenado (entretanto apenas descobrimos isso assim que ele chega). A tensão é mantida pois sabemos que algo de ruim está acontecendo, só não sabemos o que. Assim a narrativa do filme se constrói causando pequenos momentos de constante desconforto no espectador.
Quando Danny (Juliette Lewis), a filha de Bowen, sai da escola após ser "seduzida" pelo "professor de teatro" (novamente Cady) temos outra elipse, onde não podemos ver o percurso que ela fez mas sim está subentendido que ela esta voltando, e seu desespero se deve a presença e a maneira desconfortável com que Cady a tratou, alternando entre o sedutor e o perigoso.
Uma seqüência interessante onde o suspense é crescente se da quando a família prepara uma armadilha para Cady com auxílio do investigador. A tensão é constante, e seu clímax culmina nas mortes da serviçal da família e do investigador.  Trata-se de uma cena desagradável onde Bowden escorrega no sangue da vítima no chão da cozinha, e perde o controle, saindo ensandecido e dando disparos na porta da casa. O conflito se estabelece quando vemos que Cady tomou o lugar da serviçal e vai matar o investigador, sabemos disso e somos cúmplices de Cady, não podemos fazer nada assim que a tomada é cortada, ficando fadados a aguardar os resultados.
A seqüência final é grandiosa e catastrófica. Toda a tensão acumulada ao longo do filme é finalmente liberada nos minutos finais de forma grandiloqüente e apocalíptica. Ela se constrói a partir do momento em que o cenário inóspito se põe presente (um barco a beira do rio, a noite) e a tempestade crescente que se apresenta conforme a edição se torna mais ágil e fragmentada. O clímax é atingido quando temos a família a mercê de Cady, seus jogos de tortura com Sam e a alternação de ameaças a Leigh (esposa) e Danny. Temos a simulação de um julgamento de acordo com a ética doentia de Cady, que demonstra o lado falho do "herói" do filme  (Bowden). De uma forma ou de outra ele agiu errado: omitiu um fato na corte e não cumpriu seu papel moral como advogado. Ninguém é limpo de acordo com Scorsese (Bowden também flerta com uma colega de trabalho no inicio do filme, em mais uma indicação de sua dubiedade de caráter). Cady é uma lembrança disso, trás isso a tona. 


Com o clímax final temos a quebra da aparente felicidade estável da família colocada a mercê de um psicopata metódico. Bowden, algemado, está submetido aos atos de Cady que age como Júri, Juiz e Carrasco. Ele faz citações bíblicas ("Você esta condenado ao nono circúlo do inferno, o circúlo dos traidores!") dando um aspecto religioso ao martírio que impõe sobre a família. Cady é queimado por Danny, em uma cena que desperta surpresa e desconforto, mas finalmente alivio (estaremos livres dele?). Evidente que, como em todo bom thriller, as coisas não são tão fáceis assim, e o criminoso volta em um momento surpresa, agarrando Bowden e dando continuidade a atmosfera de tensão constante. Finalmente, quando o barco perde controle na tempestade temos uma alternação de cenas do barco fora de controle e a luta interior no interior dos dois personagens centrais. Tanto o barco como a câmera giram, causando a sensação de turbulência e tensão. A água e jogada mas volta, retrocede, e finalmente eles caem em uma espécie de praia.  Lá, inicia-se a luta selvagem entre os dois (chegam a usar pedras) e Cady age como a consciência de Bowden, sempre eufórico, apocalíptico. Ele é a consciência que não vai embora, nunca morre, atormenta.  Finalmente Cady afunda, lentamente, e morre. Bowden lava as mãos do sangue (sua culpa?) algo que nunca irá embora. Ele não está limpo, e Max Cady irá sempre lhe lembrar disso. 



A construção dessa seqüência é feita de forma crescente, a narrativa torna-se mais dinâmica à medida que o tempo passa e o clímax da luta final leva a um final desconfortável e inquietante. A última cena é tomada pelos  olhos inocentes (?) de Danny negativados, nos observando enquanto os observamos de volta. . "Se você vive no passado, morre um pouco a cada dia" é a frase final.     
Podemos não viver no passado, mas ele sempre será nossa sombra, sempre por perto, para nos lembrar do que somos e fizemos.



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