sábado, 29 de agosto de 2009

FLIP 2008


FLIP 2008

Com grande atraso, mais de um ano, venho comentar a FLIP de 2008. Encontrei alguns papéis que usei para anotar coisas que vi naqueles três dias. Foram três excelentes dias, aliás. Paraty revelou-se um lugar muito agradável, e assim também foi quando retornei lá com meu amigo germânico Manuel Rickert, no final do mesmo mês de Julho. Aparentemente ele também gostou muito.

É revigorante estar entre pessoas que lêem, estando no Brasil. Clichê dizer isso, mas a FLIP é um evento bom para se conhecer pessoas e entrar-se em contato com idéias novas, boa diversidade de autores e as mesas sempre trazem idéias instigantes.

Em uma nota completamente não-relacionada com a FLIP, estava eu lendo uma crônica utilizada por amigos para a feitura de um curta metragem, aliás muito bem fotografado, quando comecei a pensar sobre o oficio de escritor. A crônica é do Luís Fernando Veríssimo, escritor por qual tenho grande admiração (apesar de ter lido pouco, as crônicas dele me parecem muito sinceras, simples, diretas) e versa sobre um escritor dizendo algo sobre escrever. Diz ele que o verdadeiro escritor, quando já disse tudo o que tinha para dizer, se mata. Se não, não escrevia. Escreve para expurgar os livros de dentro de si. No final, ele decide não terminar a carta de suicídio/texto que estava escrevendo pois afinal, isso implicaria em que ele tivesse que cometer suicídio. Sensacional essa hein? Vocês não viram ela chegando!

Outra imagem do que é o centro histórico dessa sensacional cidade, meus amigos. Paraty!

Essa coisa de querer colocar algo gênial para os outros lerem é uma característica da literatura. "Tenho que passar uma mensagem, tenho que ser sofisticado". Um bocado chato e pedante isso, no final das contas. O Veríssimo é bom ok, tá, o cara é demais. Mas essa idéia de que "o verdadeiro escritor se mata depois de terminada a sua obras" e frases (ou idéias) de efeito do tipo são chatas e pseudo-profundas. Isso simplesmente não é verdade. Você pode achar que é verdade se tem uma profundidade emocional/intelectual televisiva, novelesca, da vida.

Está claro que em nada se equipara a complexidade de, digamos, Hardware do Richard Stanley, aí sim, uma verdadeira meditação sobre a vida.

Aqui está um trailer não oficial deste filme:



De qualquer forma, outras variações da arte, como a música, não se tornam obcecadas em querer explicar para os outros como viver a vida, apesar de poderem conter grande sofisticação. Música é assim.



Tenho ouvido muito ARISE e BENEATH THE REMAINS do Sepultura, que é uma banda óbvia, por várias razões; é uma banda Brasileira, é uma banda famosa, mas esses discos são realmente geniais e acima da média. São, em termos de música, outro tipo de manifestação artística, claro, que demanda outro tipo de leitura e tem outro tipo de resultado, mas que de qualquer forma é de uma profundidade e de uma complexidade muito maior do que Veríssimo e sua meditação sobre uma suposta carta de suicídio que ao mesmo tempo nos explica o que é a literatura e o que são os escritores, (Nada contra o Veríssimo. Sem choro, amigos) e eu lembro de ler uma entrevista com os membros da banda, Andreas Kisser e Igor Cavalera, onde um dizia que o melhor livro que ele já havia lido era "Pet Cemetery" do Stephen King (aliás, um autor soberbo, acima de Veríssimo, Machado de Assis, Guimarães Rosa e o que mais o que você enfileirar aqui) e o outro, Igor, citava "Cebolinha".

Vocês sabem quando eu vou escutar A-lex quando tenho Beneath the Remains? Nunca.

São pessoas que não lêem, mas criaram arte com grande complexidade.

Uma coisa é uma coisa, amigos. Outra coisa, é outra coisa.


Retomando, Paraty é um lugar absolutamente agradável. Um pouco caro, e suponho que essa virada nos preços tenha se dado nos últimos 10 ou 15 anos, mas com restaurantes agradáveis, praias bonitas, gente interessante, de maneira geral um clima muito inspirador e prazeroso.

Com certeza é um dos meus lugares preferidos no Brasil (não são muitos). Tento pensar em algo que vá descrever algo mais específico mas não saio da obviedade... Suponho que toda atmosfera do local me tenha sido boa, ou me feito particularmente bem naquele momento. Existir lá é bom, e a interação social com pessoas de todos os tipos, procedencias e idades, é frequente. As noites são perfumadas pelo mar, o céu é escuro, as ruas são de pedras irregulares e as casas são bonitas.

É um bom lugar para se estar.


Começarei pelo dia 03 de Julho de 2008.

A mesa se chamava "Sexo, mentiras e videotape", em alusão, acredito, ao filme de Steven Soderbergh. Presentes estavam Inês Pedrosa, que já foi editora da Marie Claire Portuguesa, Zoe Heller, escritora Inglesa que fez "Anotações sobre um escândalo", filme que se tornou "Notas sobre um escândalo", com a atriz Judi Dench. Filme que eu não vi e suponho que, em relação a mim, continuará nessa situação. Ou não. Recentemente ouvir falar muito bem do filme, através de fontes confiáveis, e a terceira presença era a escritora Cíntia Moscovich, que escreveu "Por que sou gorda, mamãe?" um livro, aparentemente (segundo ela mesma) inspirado em "Carta ao Pai", que é um belo exercício de exorcismo (quantos ex) sobre má paternidade do Kafka. O título do livro de Moscovich, de acordo com meus preconceitos, apontaria para algo um tanto quanto auto-indulgente, mas ela leu um bom trecho de seu livro, e disse algumas das coisas que achei das mais interessantes na mesa.

Gosto do livro "Carta ao pai". Uma das funções (ou capacidades) da arte, afinal, e estabelecer essa empatia e essa conexão de experiências entre as pessoas. Isso nos faz criar amor a arte, mas também nos faz confundir-mo-nos com o autor (está certo isso? Espero que sim). Frequentemente entro em contato com pessoas que acreditam que, por que compreendem e captam algo de uma obra de arte, são "parte"dela ou são, de alguma forma "como"o artista. Isso é uma grande mentira. Ser espectador, receptor de arte é uma coisa. Ser artista é outra, e muitas, muitas pessoas se confundem com essa linha, acreditando que perceber a genialidade de um artista equivale a tornar-se um gênio, ou de alguma forma estar perto desse artista. O trabalho criativo de um artista é muito diferente do processo de recepção que o espectador exerce, que é passivo e de decodificação e compreensão. Em suma, ser fã não é ser artista, são procedimentos muito diferentes que exigem trabalhos muito diferentes.

Zoë Heller, supostamente xavecada por Neil Gaiman durante a FLIP.

De uma forma um pouco melancólica, Cíntia definiu as pessoas como "um abismo", cada um de nós seria um, e completou de forma excelente: "O drama da existência não é tão vasto como queremos", e não é mesmo. Criamos tanta análise, tanta conjectura, tantas idéias confusas e profusas sobre estar vivo que sinto que, muitas vezes, sequer lembramos mais qual é a pergunta original. Acima de tudo raramente chegamos a algo realmente de interessante dessa fecundidade de estudos de possibilidades e de respostas para estas possibilidades. Tanta filosofia produzida sobre a vida, e no final das contas, o drama humano é o mesmo, insolúvel e irremediável, há milênios.

Nós não somos tão complexos quanto queríamos ser e estar vivo não é tão complicado. Comer, dormir, procriar, tentar manter-se vivo. Pode ser doloroso e difícil, mas toda essa montanha de arte e especulação psicológica, religiosa e cultural que criamos é muito mais desespero do que um estudo real eficiente (ou uma maneira realmente produtiva) de lidar com a dor humana, infrequentemente resulta em algo que vá apresentar resultados palpáveis.

E esse é meu desenvolvimento das idéias apresentadas pela Cíntia Moscovich, e não o que ela disse.

Ela desenvolve, dizendo que não existe nada de muito exótico em se escrever, é a soliedariedade com o leitor que faz tudo. Escrever é compaixão. Partilha pela paixão dos outros.

Há uma breve e divertida discussão sobre o que é "literatura feminina". Algo muito interessante que Heller diz é que mais ou menos qualquer coisa é visto como "Literatura Feminina" quando é escrito pelo ponto de vista de uma mulher, enquanto que quando é escrito por um homem é apenas "Literatura". Acredito que ela esteja certa e que o mesmo seja válido para outras literaturas; diremos que tal assunto é visto através da "visão homossexual" se for escrito por um gay (a despeito do assunto abordado ter uma relação direta com homossexualismo ou não). Triste isso, classificamos qualquer interesse de "minorias" de acordo com condições delas que não se relacionam necessariamente com a questão exposta.

04/07/2008

David Sedaris e Matthew Shirts.

Sedaris é um Norte-Americano, e se comporta falando de forma muito Americana. Trabalhava como um Elfo numa joja da Sears (ou Macy's, como dizem outras fontes). O quão começo-de-uma-comédia-no-HBO é isso? É gay, e me passa a impressão de ser um pouco melancólico. Sua comédia é triste, suas piadas, desencantadas com o mundo. Bom momento se dá quando ele fala que costumava viajar de carona pelos EUA, que ele pegou este último momento no qual isso ainda poderia ser feito nos EUA, antes de se tornar algo muito, muito perigoso, e recontou como foi o último dia no qual fez isso. Após pegar carona com um casal, o homem que está dirigindo virou-se para ele e disse "How would you like to eat my wife's pussy?", para o que ele, apavorado, replicou "I.. I'm GAY!".

Acredito que esse período de caronas tenha acabado no início da década de 80. Á partir daí, disse ele, as pessoas apenas lhe davam carona se pudesse conseguir algo em troca, algo de você, normalmente arranjar drogas ou sexo. E querer algo de você também é algo tipicamente Norte Americano. Por mais que isso pareça um julgamento caricato, eles são sim, viciados em consumo e muitos vêem as pessoas como oportunidades. Existe um espírito lá que exerce isso como modo de vida.

Ele diz que as vezes não gosta muito de viver. "Como assim?", é perguntado, e ele explica que não é que ele odeie a vida, exatamente, mas as vezes, durante um vôo, não se importaria se seu avião caísse.

David Sedaris
Diz que sente que não quer morrer por que perderia a oportunidade de ler livros novos de seus autores preferidos. Alguns deles: Tobias Wolff, Lorrie Moore, Alan Bennet. Vive na França mas mora metade do ano em Londres.

Fala mal (e de forma engraçada) sobre Gregos. Humor Americano, faz quase um estereótipo do que descreve, talvez pela necessidade de alguns Americanos de rapidamente resumirem as coisas. Me impressiona como ele passa tristeza. Me lembro vagamente dele ter mencionado que sofre de depressão, talvez? E que se medicava ha anos? Não tenho certeza. Na verdade acho que sim. E finaliza "I am not a huge fan of my own writing", e todos riem. Como será que ele e sente pensando sobre isso, sozinho, depois? Deve ser uma pessoa interessante de se conversar com.

04/07/2008

Nathan Englander.

Bom o Englander. Nunca havia ouvido falar dele. Um Judeu novaiorquino, indignado e decepcionado com o mundo no qual vivemos. Jovem (38 anos) ele demonstrou ser muito sincero, disposto e triste, realmente parecia estar "procurando uma saída" para o que ele observa no mundo. Senti grande empatia com ele, provavelmente por ele ser jovem e se preocupar com a condição do lugar e do "ser" em que vivemos. Fez colocações aplaudidas sobre o governo Bush e sobre a surpresa estúpida com a crise do petróleo e o fato de que teremos problemas de energia sim nos próximos 30, 40 anos. E me pergunto como serão esses anos. Darker Days Ahead, como já dizia o finado Jesse Pintado.

http://www.worldentertainmentinc.com/images/Jesse%20Pintado.jpg
Jesse Pintado que, uma vez, bêbado, tentou brigar comigo por que derrubei cerveja nele. Pelo menos você não verá a horrenda crise energética que tomará conta do mundo daqui uns 40 anos, não é mesmo? RIP Jesse, sem ressentimentos.

Não surpreendentemente em Setembro estourou a crise econômica mundial, causada, basicamente, pela utilização irresponsável de "crédito" que não existe.

Assim como Englander, tenho a nítida sensação de que o mundo está piorando e irá piorar. Ele cita a antiga verdade sobre a sensação que temos diante de instituições; nos sentimos impotentes diante de forças políticas que parecem muito maiores do que nós. Tão trivial e repetido, mas tão importante. Isso me lembra algum professor que tive na USP, não me lembro agora quem exatamente, talvez o Modesto Florenzano, lembro-me dele falando sobre quando nos referimos a oscilações na economia que o "mercado" quer e o "mercado" deixa de querer, personificando-o quase como uma entidade metafísica, monstruosa, uma espécie de Deus, afinal. Pode parecer óbvio, mas o ponto mais interessante que ele trouxe à tona nesse dia foi de que o "mercado" é feito por pessoas, e não é um monstro sem rosto, ingovernável, que nos leva a apatia e a sensação de impotência. São pessoas, pessoas que acordam de manhã e vão tomar decisões, decisões essas que afetarão milhares de vidas, e é especificamente a isso que Englander se referiu, demonstrando grande tristeza.

"A população é muito maior do que o Estado", ele diz, assim como pregava o slogan da adaptação cinematográfica de "V de Vingança", de Alan Moore; "As pessoas não deveriam temer seus governos. Governos deveriam temer as pessoas". Englander continua explanando sua crise "O mundo está acabando e eu saio em uma tour para promover meu livro". Esse tipo de culpa e sensação contraditória é algo que não nos escapa.

Quando eu era criança, sempre pensei que ser adulto era ter mais certezas e poder aproveitar elas, mas isso, evidentemente, não é verdade. É uma típica visão infantil, e que justamente faz falta a quem atinge a maturidade. Mesmo que tenhamos ganho outras coisas com a sabedoria dos anos, que também são muito preciosas.

Na verdade, não sei se a troca é boa.

05/07/2008

Tom Stoppard e Luis Fernando Veríssimo.

A apresentação de Veríssimo é feita com uma leitura de texto. Acho isso chato, aborrecido. Pra que? Que mania de Brasileiro de querer ser formal. A apresentação de Roberto Schwartz também foi assim (abrindo a Flip, falando sobre Dom Casmurro), lendo um enorme artigo/dissertação/texto que havia produzido, imagino, para a ocasião. O texto era, claro, muito bom, mas ele leu com uma régua, passando o texto lentamente, coisa canhestra. Consigo imaginar poucas coisas mais chatas do que simplesmente ouvir alguém lendo um texto que produziu de forma repetitiva e monocórdica. Acho que é coisa de Brasileiro isso, medo de errar ao improvisar um pouco. Se o Versíssimo tivesse apenas lido o verbete da Wikipedia 3 horas antes, (em inglês, o em Português deve ser pobre) sobre o Stoppard, já estaria preparado para fazer essa introdução.

Também não entendo direito por que escolheram ele. Marcelo Tas era mediador do Neil Gaiman sem saber quase nada sobre ele. Nada contra o Tas, que foi divertido e fez bem seu papel, mas não seria melhor colocar alguém que já leu Sandman, Deuses Americanos, Anansy Boys, Neverwhere, Stardust, etc para mediar esse encontro? Parece que socaram ele lá por que ele é uma celebridade moderna e prafrentex que vai se encaixar bem com esses escritores igualmente atuais e muito loucos que são Gaiman e Richard Price! Vai funcionar!

E funciona, mas me parece uma coisa um pouco "subdesenvolvida" e eternamente deslumbrada, de a elite, qualquer que ela seja aqui (com afinidades ou não com o que vem de fora, sempre mais interessante) de querer se associar com esses exóticos e superiores escritores internacionais.

E além disso, Veríssimo abre a apresentação dizendo "O mágico, Tom Stoppard", um pouco deslumbrado demais.

Mas divago. Apesar de que o que são essas memórias a não ser uma grande sessão de divagações?

Boa discussão, Stoppard fica de pé e faz uma apresentação como uma palestra ou aula. Começa falando que evidentemente não é muito conhecido no Brasil por ser dramaturgo, e lentamente tenta definir o que é "escrever bem". Segundo Stoppard, a essa questão podemos imputar duas variações; na primeira variação (e segundo ele, na mais comum) falamos de manipular linguagem com experiência para formular um pensamento impactante em uma sequência arquiteturalmente/intelectualmente elegante de palavras.

Concordo, mas na verdade a seqüência de palavras sequer precisa ser muito elegante, o que realmente importa é ter um pensamento impactante dentro delas. Trazer a "seqüência elegante" tem cada vez mais tornado-se um opcional. Muitos escritores, o meu frequentemente citado Stephen King, por exemplo, não é famoso por fazer tantos "pensamentos impactantes" em frases de efeito arquitetônicas. King é excelente em criar atmosferas e narrativas bem acabadas, com continuidade rigorosa e supreendentemente lógica. Imagino que ele tenha criado notas e mais notas sobre tudo que colocou em "The Dark Tower" para dar conta da continuidade (trata-se de um livro de quase 4000 páginas escrito ao longo de mais de 20 anos, e a continuidade está preservada. Evidentemente ele tomou notas e fez tabelas para poder se orientar diante da quantidade de coisas que estava criando).

Ele é um excelente escritor e suas qualidades não estão em fazer frases de efeito que condensam idéias particularmente pungentes, impactantes e reflexivas. O que Stoppard está definindo como "boa escrita" aqui é o Oscar Wilde sendo engraçadinho ou o George Bernard Shawn sendo irônico e fazendo alguma observação sobre a hipocrisia. Um pouco limitado, mas vamos lá.

A segunda variação de "escrever bem" que Stoppard relata é a utilização de palavras simples e à principio óbvias na situação perfeita. E isso é muito mais difícil de se fazer. Palavras-comuns chavões, que, colocados em um momento em particular atingem um brilho especial e elevam toda a "cena", dando um brilho emocionante a narrativa em questão.

Os exemplos que ele usa são de diálogos/ação em ficção, e não sua utilização em colocações filosóficas, debates intelectuais, considerações abstratas e afins. Logo, essa é "boa escrita" para ficção.

E então ele se refere a uma cena de "O Terceiro Homem" onde exatamente uma frase de efeito do primeiro tipo de "boa escrita", impactante, com efeito, inteligente, é utilizada. O roteiro original é de Graham Greene, mas a frase aparentemente foi cunhada por Welles no set, ela não depende em NADA da narrativa e poderia estar em qualquer lugar de praticamente qualquer filme, e por isso mesmo não se prende a melhorar a narrativa, e diz o seguinte: "NA ITÁLIA, por 30 anos, sob os Bórgias, tiveram guerra, terror, homicídio, sangue e produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, tiveram amor fraterno, 500 anos de democracia e paz e o que produziram...? O relógio-cuco."

Também é dito que Welles credita a frase (ou a idéia da frase) a uma "velha peça Húngara". Quem sabe? Não importa.

O que Stoppard quer explorar não são estas inteligentes e intelectualmente impactantes frases de efeito, e sim as palavras-comuns colocadas em situações especiais. Ele nota, muito bem, que a construção dessa frase é feita através de aplicação, de referencias literárias, e que quem realmente lê e se dedica, se tiver o intelecto suficiente para tanto, pode acabar sim também produzindo uma frase tão boa quanto essa. Nesse sentido, ela é menos interessante do que o uso de uma frase absolutamente ordinária em uma situação perfeita, que traz a cena poesia, impacto e principalmente reverberação emocional muito grandes.

Uma observação excelente que ele faz é notar que o filme realmente precisa parar para que essa frase seja proferida pelo personagem de Welles. Ela não leva a história para frente, não a faz progredir, e portanto, e termos de diálogos cinematográficos, não é a melhor frase do mundo. É uma pausa quase exibicionista do intelecto de Welles e o quão incisivo ele pode ser.

Stoppard então lembra-se de uma boa cena de "O Fugitivo", com Harrison Ford como homem acusado de ter matado sua esposa fugindo da polícia, tentando provar sua inocência enquanto alega que foi vítima de um "homem de um braço só".

Na cena, Harrison está armado, mas encurralado por Jones em uma rede de túneis de água que levam a um precipício. Com o poder em mãos, Ford, apontando a arma para Jones, defende-se com a única coisa que pode dizer: "Eu não matei minha esposa", usando sua inocência, o cerne do conflito do filme, como valor de troca com o policial.

O que Ford precisa fazer, como protagonista, é persuadir seus antagonistas, deixar claro a eles, que ELE É inocente. A verdade é seu único trunfo, seu único valor, e é com essa moeda, a mais pura que ele tem, que Ford aborda Jones, estando em uma situação de superioridade e controle momentâneos, já que Ford está armado.

E então Jones retruca, com os braços rendidos: "Eu não me importo", deixando claro que o que está em logo alí não é a inocência de Ford, e sim o fato de que ele deve ser preso.

Todo o filme é levado por conceitos abstratos de lei e ordem, de certo e errado, de justiça e injustiça que criam uma sociedade civil. E quando Tommy Lee Jones diz que não se importa se Ford é inocente ou não, todos estes valores vão por àgua abaixo e tudo o que temos é a perseguição de Ford pela pura perseguição, em um movimento mecânico e cego.

O mesmo se dá, de certa forma, com o personagem Popey Doyle, o violento e racista policial interpretado por Gene Hackman em "Operação França", quando, no final deste excelente filme do diretor William Friedkin, que depois de fazer "Operação" e "O Exorcista" jamais conseguiu realmente brilhar (apesar de eu gostar muito de um filme dos anos 80 dele chamado RAMPAGE, sobre um serial killer, mas isso não vem ao caso no momento), Doyle acaba matando um inocente, completamente obcecado por sua cruzada contra os traficantes franceses.



Em quatro palavras, "Eu não me importo", Tommy Lee Jones deixa claro que o filme se trata de uma perseguição pela própria perseguição, e nada mais. Stoppard diz que isso é um momento de perfeição, já que com uma pequena frase todos os valores da narrativa são invertidos.

Ele valoriza uma boa cena de "Indiana Jones e a última cruzada", na qual o personagem central, após despenhar de um penhasco em uma seqüência de perseguição com tanques nazistas, consegue subir escalando uma montanha. Seu pai e um amigo ficam observando o desfiladeiro, lamentando a morte de Indiana, enquanto com grande dificuldade ele chega a eles. Depois de se reconciliarem, uma lufada de vento trás o inconfundível chapéu de Indiana. Segundo Stoppard, essa cena é tomada por poesia e ele gostaria de ter escrito ela. E ela realmente é, fazer o chapéu voar de volta para Indiana foi uma maneira quase mítica de dar ao "man with the hat" de volta algo que lhe é simbólico como personagem e permitir a continuidade da ação.

Ele quase pede desculpas por citar Indiana Jones, aliás, o que é um pouco bobo. O público da FLIP com certeza seria preconceituoso com Steven Spielberg e citações de Indiana Jones pegariam mal, e ele sabe disso. Mas para que se desculpar, no final das contas? Stoppard faz questão de frisar que "Spielberg não é um intelectual, mas isso foi genial, pois ele transformou o problema (a ausência do chapéu) em um momento sublime", ou seja, ele consertou a narrativa com um momento de poesia imagética.

E levando a coisa mais adiante e sendo ainda mais minimalista; ele cita uma cena de Chinatown na qual temos uma "establishing shot" de uma casa, depois, longas tomadas interiores, sem que ação alguma ocorra. Subitamente; fumaça de cigarro aparece na tela, vindo de um dos cantos. E assim sabemos que o personagem de Jack Nicholson está na cena.

Todavia, depois de notar isso, Stoppard re-assistiu ao filme, com colegas, avisando antes "Ok, esperem pela cena do cigarro" e quando chega a seqüência... A fumaça não está lá. Portanto, nesse sentido, o sutil trabalho de se colocar um pequeno elemento que irá trazer todo um significado a cena foi feito PELO espectador, assim, a fórmula, segundo Stoppard, atinge uma espécie de ápice; o espectador é forçado a fazer uma espécie de metonímia. E isso, meus amigos, é uma espécie de MAGIA.

Pelo menos segundo o Stoppard.

Eu diria que você precisa de um público bastante perspicaz e criativo que consiga fazer isso para começo de conversa, o que é um certo desafio, mas é uma observação inteligente sobre a escrita e sobre como perceber arte e não posso desconsidera-la.

Bom o Stoppard ao vivo. Ele obviamente planejou toda a apresentação, inclusive as partes que tirariam risadas do público (como quando revela que ELE criou a fumaça de cigarro em Chinatown). Evidentemente ele leciona ou já lecionou pois sabe atingir todos os pontos de virada que criam uma narrativa de uma boa apresentação.

Artificialmente, e de forma muito bem colocada (não vejo o fato de que ele planejou cada exemplo e cada momento como algo ruim, absolutamente) ele descreve uma encenação que viu de A TEMPESTADE de Shakespeare, na qual a produção foi feita por um grupo que ele definiu como amador (mas que provavelmente no Brasil seria considerada uma produção profissional, tal a descrição).

Com o intuito de fechar sua apresentação, Stoppard fala "Muitas das coisas que lembramos de peças são coisas que não foram escritas", e que isso é muito importante, reforçando o trabalho do espectador. Elementos da encenação que não estavam no roteiro e que se prendem exclusivamente a aquela apresentação fazem muita diferença. Na encenação Shakesperiana em questão, no final da peça, o personagem de Ariel corria por um gramado ao ar livre, com o sol se pondo, finalmente atingindo um lago onde uma ponte submersa de madeira havia sido colocada, para que o ator corresse sobre a água. Tudo que se ouvia eram seus passos aquáticos ecoando sobre o líquido, até que a figura desapareceu na escuridão. E então, ao fundo, um estouro de fogos de artifício se fez no ar, e escreveu-se "Ariel EXITS", finalizando tudo. E assim Stoppard finalizou seu monólogo de forma poética e impressionante, gerando aplausos e apreciação geral.

E tudo isso acima ficou muito mais uma descrição do que uma análise do que aconteceu.



Uma boa frase, muito verdadeira e pouco acatada por estudantes de Cinema e cineastas em geral desse nosso Brasil Varonil, dita por ele foi "Eu prefiro um grande western a um filme de arte medíocre", o que é a verdade absoluta da arte, mesmo por que é muito mais fácil fazer um filme "de arte" pedante, pseudo-enigmático e entediante do que um western clássico bem acabado. "A criação é auto suficiente, o que é necessário é você, papel e caneta" ele diz, e isso ilustra bem a oposição entre Cinema como uma forma de arte e a literatura.

Os obstáculos, entraves, burocracia e desgraças entre a concepção de algo para o Cinema e seu resultado final, são enormes, e o mesmo não é verdade na literatura. A criação para o Cinema exige a construção laborosa e burocrática de um universo a ser colocado diante das câmeras. Qualquer idéia ou emoção que o artista (ou cineasta) queira transmitir deve ser transmitida minuciosamente através de todo trabalho, feito primordialmente por obstáculos físicos, que são fazer Cinema, uma disciplina extremamente dependente da matéria. A literatura e mesmo a pintura, escultura, música e outras formas de arte dependem muito menos da técnica do que o Cinema, e por isso a chegada em resultados mais rápidos.

Por outro lado, o poder impactante e imersivo do Cinema provavelmente é inigualável, desde que o espectador esteja disposto a realmente submerger nas imagens e sons.

Stoppard é claro e sincero, diz que escreveu sua última peça a quatro anos (será essa Rock and Roll? Não vou parar para pesquisar agora). Ele é, ou tenta ser, complexo, profundo e grandioso, o que gosto. Frisa que ter uma opinião é não é ter uma narrativa, e muitas vezes vejo pessoas com idéias vagas que realmente não são por si histórias, apenas conceitos. A maioria das coisas que inspiram escritores vem de idéias abstratas, sem personagens, narrativas, nada. Cabe ao escritor criar uma narrativa para ilustrar pontos interessantes e conceitos a serem discutidos, e isso é muito mais dificil de se fazer do que se observar coisas curiosas sobre a vida, o universo e tudo mais.

E, para escrever, ele usa uma fountain pen e lined paper.

É acho que é isso. Não consigo pensar em nada mais para relatar ou refletir sobre a FLIP do ano passado.


Joaquim EXITS!

Um comentário:

Marxperience disse...

Não escuta A-LEX, mas escuta ROOTS. Veadinho.